Em tempos de coronavírus

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Sabe quando você está numa encruzilhada e não sabe para qual lado seguir?

Suas opções são: demonstrar a fragilidade e assumir tudo o que está sentindo, ou continuar como está e tomar todas as suas forças, para simplesmente seguir em frente quase ignorando o ocorrido mesmo sabendo que nenhuma das duas opções será a solução, muito menos o melhor a se fazer.

Enfim, me deparo outra vez com essa dúvida que me mantém estacionada nessa encruzilhada.

Sei que demonstrar o que sinto não irá me ajudar a resolver o problema, assim como sei que ignorá-lo poderá até piorar a situação.

Apesar disso, escolhi registrar tudo que sinto. Pode não ser uma coisa de toda boa, mas imaginar que um dia irei reler, me lembrar com um sorriso e pensar “puxa, consegui passar por isso” já me motiva a então fazê-la.

Gosto de idealizar que ao expor o que sentimos de uma forma a conseguir ser bela aos olhos de quem está por fora das situações, faz tudo o que passamos valer a pena. Imagino que isso seja apenas uma visão otimista perante a tragédia da vida e tudo que possa nos acontecer, mas sei que não sou a primeira e nem a única a pensar isso.

Alphonsus de Guimaraes (Afonso Guimarães) escreveu o poema Ismália que diz:

“Quando Ismália enlouqueceu Pôs-se na torre a sonhar Viu uma lua no céu Viu outra lua no mar No sonho em que se perdeu Banhou-se toda em luar Queria subir ao céu Queria descer ao mar E, no desvario seu Na torre pôs-se a cantar Estava perto do céu Estava longe do mar E como um anjo pendeu As asas para voar Queria a lua do céu Queria a lua do mar As asas que Deus lhe deu Ruflaram de par em par Sua alma subiu ao céu Seu corpo desceu ao mar”

Lembro-me perfeitamente da primeira vez em que li esse poema. Estava no ensino médio e estudávamos sobre o simbolismo numa aula de literatura.

Meu primeiro pensamento ao lê-lo foi: “cara, que escrita deslumbrante.” Já meu segundo foi: “caramba, isso foi uma morte? “

Por muitos anos me lembrava desse poema, até hoje é meu, nacional, favorito como algo terrível que ainda assim conseguiu ser passado de forma bela e marcante. Talvez eu seja um tanto mórbida em ver beleza até em narrativas assim, mas isso acaba refletindo meu relacionamento com a escrita que é algo já antigo.

Sem dúvida, desabafar pela escrita é algo maravilhoso para mim, mas dessa forma também podemos entender o que estamos sentindo e é essa a minha parte favorita da escrita:

organizar as ideias e sentimentos em palavras que te fazem analisar o que está se passando dentro de você.

Por isso decidi escolher a escrita para descrever esse meu inoportuno momento de divisão.

Vamos aos fatos:

Uma pandemia causada por um coronavírus chamado COVID-19 está se alastrando cada vez mais por meu país. Moro numa cidade chamada Ponta Porã, com pouco mais de 80.000 habitantes, fronteira seca com uma cidade chamada Pedro Juan Caballero, Paraguai, possui mais de 110.000 habitantes. Essas duas cidades são, na prática, uma única de médio porte. Por conta disso, e das universidades de medicina em Pedro Juan Caballero, cerca de 13.000 habitantes são estudantes e a cada ano esse número cresce.

Sabendo que existem pessoas de quase todo o Brasil estudando aqui e ainda levando conta o fluxo diário de pessoas de outro país, é compreensível minha preocupação com essa tal pandemia. Quando estávamos perto do Carnaval eu falava abertamente que depois dele iria começar a aparecer casos dessa nova doença, mas só se não fechassem as fronteiras, principalmente para pessoas que viriam de locais muito contaminados.

Durante o Carnaval, a festa com a folia típica desse período foi como o esperado e poucos dias depois já tínhamos nosso primeiro caso confirmado: um homem que havia chegado de um país amplamente contaminado, como já era de se esperar. Algumas semanas depois já temos centenas de infectados confirmados, milhares de pessoas com suspeita da doença e um pânico começando a crescer entre todos.

Em minha cidade não existe nenhum caso confirmado, mas é incrível como muitos ficaram gripados justamente agora mostrando uma baixa imunidade e mais incrível ainda, como já ouvi pessoas dizerem “só tem o corona quem descobre” ao afirmar que não iriam ao hospital. Em cidades vizinhas já existem casos confirmados e a chance de já ter chegado a Ponta Porã em silêncio é enorme.

Sinceramente, não tenho medo de pegar essa doença nem que meus pais e irmão, que moram comigo, a peguem. Seria uma chance mísera de a enfrentarmos e uma menor ainda de sofrermos com ela de uma forma fatal mesmo com tudo que já foi apresentado aqui.

Esta situação me faz temer pela minha avó materna, por exemplo que, mora no centro de Sorocaba, São Paulo, sendo uma das áreas mais afetadas do país e está justamente no campo de risco por sofrer de doenças crônicas, como hipertensão, e ter mais de 65 anos.

Nós passamos os últimos três ou quatro anos basicamente implorando para que ela viesse morar conosco aqui em Ponta Porã, mas ela sempre negava e retrucava que não deixaria sua casa sozinha, correndo o risco de ter suas coisas furtadas ou até depredadas e que não gostaria de se desfazer de nada. Ela mora sozinha e nosso parente mais próximo, uma tia com mais de 50 anos, mora do outro lado da cidade e não pode visitá-la diariamente.

No dia 17 de março de 2020, o avô de alguém morreu sendo nossa primeira vítima fatal do COVID-19. Acordei com essa informação transbordando em quase todos os meus aplicativos de notícias. A primeira coisa que temi mesmo que apenas em meu subconsciente foi: poderia ter sido a minha avó.

Eu não tenho como estar com ela para ajudá-la a se cuidar. Não tenho como fazer as compras para ela e tomar as devidas precauções a fim de que ela não corra riscos. Não tenho como obrigá-la a ficar em casa sem abraçar as pessoas que ela tanto considera. Não tenho como viajar para lá e trazê-la nem se fosse à força para minha cidade que ainda está bem mais protegida do que onde ela está. E ninguém poderá fazer tudo isso por mim.

Acompanhei o que os italianos passaram e ainda estão passando com esse vírus e a única coisa que pude fazer foi tentar conscientizar quem está ao meu redor da seriedade do assunto. Mesmo assim começo a chorar com meu peito apertado pensando que isso não será o suficiente para proteger quem eu tanto amo, pois as pessoas ao seu redor podem não estar com o mesmo nível de consciência.

Sinceramente, nunca tive tanta vontade de ter um super-poder como agora. Quero tirar minha avó de onde ela está num piscar de olhos, pois não suporto a ideia de perdê-la por causa de uma “gripe modificada” como outras pessoas já estão perdendo seus amados familiares,

assim como não consigo olhar para o número de mortos pelo mundo que esse vírus está fazendo, sem pensar na dor das famílias que os perderam. Não consigo não me colocar no lugar deles e não é apenas pelo risco que tenho de passar pela mesma dor.

Fico completamente indignada de ver meu povo não levando a sério esse problema e muitas vezes até fingindo que não existe. Será que ninguém percebe que quanto mais rápido o controlarmos mais rápido tudo voltará ao normal?

A solução, com base no que outros países passaram, é uma quarentena. Fechar as fronteiras, parar os trabalhos e escolas e fazer com que todos fiquem em suas próprias casas para que o COVID-19 não se espalhe ainda mais. Se isso fosse seguido corretamente, em cerca de três semanas tudo já poderia estar resolvido.

O Paraguai entendeu isso. Quando confirmaram oito casos, o país já estava literalmente fechado com direito a um toque de recolher pela noite e tendo prisões efetuadas de pessoas que não levaram a ordem a sério.

Parando tudo logo no princípio do caos é fácil controlá-lo e não deixar que ele cresça até acharem um meio de acabar com ele ou simplesmente deixar que ele passe fazendo tudo durar pouco tempo.

Meu precioso Brasil, cerca de 20 vezes maior territorialmente que o Paraguai, não pensou o mesmo.

Acho claro que um dos piores problemas do brasileiro é justamente a mania que ele tem de postergar os problemas até que os tais se tornem tão grandes que o pânico acaba sendo algo costumeiro e inevitável. Desde fazer um trabalho de escola na última hora para entregar até controlar uma pandemia que chega ao país, esse jeito brasileiro parece uma marca registrada.

E então é nesse ponto que chegamos à minha fatídica encruzilhada.

Até onde foi responsabilidade minha? Até onde devo me importar com o que está acontecendo ao meu redor se não me atinge diretamente?

Querendo ou não, descobri que as respostas para cada uma dessas perguntas na verdade são: tudo ou nada.

Não existe meio termo para a empatia. Não existe meio termo para a falta de responsabilidade perante o reflexo das próprias atitudes perante os outros. Ou pelo menos não deveria existir.

Em tempos de coronavírus, eu decidi me questionar e refletir sobre onde estamos e onde eu sonho que um dia cheguemos.

É a coisa mais utópica que já pensei em expor, mas um dos meus maiores sonhos é ver se concretizar a parte do hino nacional brasileiro que diz: “Brasil, de amor eterno seja símbolo (…) mas, se ergues da justiça a clava forte, verás que um filho teu não foge à luta e nem teme, quem te adora, a própria morte”. Neste simples trecho Joaquim Duque enfatiza um amor tão grande pelo Brasil que se alguma ‘arma’ se levantar contra a justiça nenhum brasileiro fugiria da luta ao ponto de até morrer pela pátria e, portanto, a justiça para ela.

Li recentemente que “para nossos avós pediram para irem à guerra, para nós pedem que fiquemos em casa e nem isso conseguimos fazer”. Essa reflexão pousou em mim e às vezes me pego pensando sobre essa questão me levando a questionar se essa falta de responsabilidade para com o próximo não seria a verdadeira injustiça que sofremos e propagamos.

Não irei me importar com minha responsabilidade perante os problemas que meu país enfrenta se eu não tiver empatia. Não irei ver o problema do outro e me importar sem a empatia. Somente irei procurar usar todas as minhas forças para ajudar quem precisa se eu tiver empatia.

No fim, o único método de prevenção que o brasileiro precisa em tempos como o que estamos enfrentando é a empatia e, francamente, não me admiro que estamos falhando tanto por isso.

Pensamos em nossos problemas financeiros e que precisamos ganhar nosso dinheiro para nos sustentar mais do que pensamos que isso pode custar uma vida. Por isso temos tantos casos de roubo, roubo com ameaça de morte e latrocínio. Pensamos tanto no que sentimos e no quanto precisamos de algo sem ligar nem para a vontade do outro que é por isso que existem tantos casos de relacionamentos abusivos e feminicídios. Internalizamos tanto nossos próprios

pensamentos e vontades que é por isso que existem tantas brigas por questões como a sexualidade de alguém que simboliza simplesmente uma ideia contraria a nossa.

O brasileiro é um povo egoísta que apesar de sofrido, explorado e marginalizado não aprendeu nada com os erros dos outros e, pelo que vejo, nem com os próprios. Visamos tanto nossos lucros e nossas preferências que fazemos de tudo para impor o que achamos certo sem dar o direito de fala civilizada para o outro lado do debate.

Felizmente, ainda existem aqueles que buscam o diálogo sensato. Existem pessoas que independente de crenças buscam entender o outro lado e fazer com que ele o entenda sem que ele se sinta desrespeitado. São essas pessoas que me fazem olhar com amor por esse país e pensar que ainda vale a pena lutar por ele.

Neste momento devemos ser como essas pessoas. Devemos levar calma e diálogo, mas também levar consciência. Essa pandemia serviu para mostrar, outra vez, o que existe de pior em muitas pessoas através de atitudes como aumentar o preço de mercadorias para lucrar, mas também que ainda existe uma saída.

Ficar em casa o máximo que conseguir apesar das dificuldades financeiras ou quaisquer outros problemas é mais do que apenas uma forma de proteção, é uma forma de empatia.

Defendo ferozmente que cestas básicas deveriam ser distribuídas para as famílias mais afetadas com o dinheiro dos impostos que elas também pagam assim como defendo que a paralisação geral de absolutamente tudo (como em países que congelaram até as dívidas que pessoas tinham com os bancos) com esse tipo de ajuda solidária do governo seria a melhor solução para passar por essa doença de uma forma mais “leve” e que poderia fazer com que ela fosse controlada.

Apesar de ser apenas um sonho possivelmente distante, ainda consigo ver uma forma de transformar toda a catástrofe e pânico numa narrativa bela com uma união de brasileiros em busca da justiça pela pátria como o trecho do hino nacional já citado. Deixar o medo de confiar no próximo para se colocar no lugar dele sem pedir em troca nem a mesma atitude dele é a atitude mais digna e corajosa que esse período pede, pois se o máximo de pessoas fizesse isso nossa realidade com certeza seria outra.

Se essa visão de empatia e cuidado para com o próximo pudesse ser contaminada mais do que o COVID-19 algo de belo estaria surgindo desta situação. É com esse princípio que os “patrões” poderiam olhar com a consideração devida e, quem sabe, até ajudar aqueles que realmente precisam de ajuda financeira principalmente nesse trágico momento.

Enquanto esse momento não chega, fica expresso apenas meu desejo inocente de ver a essência do meu poema nacional favorito se concretizando, mostrando que mesmo abordando um tema tão difícil e triste ainda é possível descrevê-lo de forma poética e bela.

Letícia S. Dias – Acadêmica de Direito na FIP Magsul.

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